Uma confissão
Eu já há muito tempo forjei um discurso de que não fui feita pra ser artista. Mais do que isso, que não quero ser artista. Dessa forma retomo o poder da decisão a mim, que poderia ser artista, mas decidi que não quero, porque não. “Sou daquelas que gosta de olhar e comentar” digo aos outros, “daí vem minha paixão pela crítica e pela curadoria”. Estou sendo sincera quando digo sobre uma paixão nessas áreas para além de que acho normal tentar racionalizar ou até historicizar uma relação. Faz parte da mística, de que há um chamado para essas coisas que por vezes nos damos conta depois de uma longa jornada. Um belo dia se acorda e compreende, então é por isso que faço o que faço. E eu, que sou uma gênia, cheguei a essa conclusão antes dos 25 anos, óbvio.
Mas a verdade é que uma vez conheci um homem. Há alguns anos já não nos falamos e eu trabalho arduamente para que seja assim. A gente trabalhou juntos, eu e esse homem, um ser humano desagradável de um charme inexplicável, não por ser indescritível, mas por ser incompreensível. Um homem podre desse, ganancioso, cheio de vontades. E de charmes. Eu caminhando, ele sempre ao lado como um urubu - carniceiro, meu animal favorito.
Esse homem arrancou de mim metade da minha vida numa noite em frente a uma plateia como se fosse nada e eu tenho me virado com o que sobrou desde então. Muito pouco, penso comigo mesma por vezes. Não sei ainda exatamente quais são as sobras, mas sei que o que me foi tirado era de uma preciosidade, minha relíquia pessoal. Fico me perguntando se ele guardou, se está na sua cabeceira com um prêmio merecido, numa gaveta de cacarecos, na parede da sua área de lazer, em cima da poltrona que eu sentei silenciosa enquanto ouvia todas as piores coisas vindo da boca dele. Se jogou no lixo, seguindo minuciosamente o script em seu caderno, sua performance de desdém. Rezo todos os dias para que tenha me jogado uma praga, porque no fundo creio que na realidade se tratava de uma profecia que eu faço questão de cumprir todos os dias quando digo que “não quero ser artista”.
Um dia, num lapso de algo que não sei o que ainda, vou buscar o que é meu e se consumará minha obra prima: vou me matar na frente do seu portão, filho da puta, eu sei onde você mora.